Alguém já disse (permitam-me voltar sempre a esta dualidade
inexorável!) que o que distingue a direita da esquerda, dentre outras coisas, é
que esta defende a igualdade das condições de vida dos cidadãos enquanto aquela
assume com naturalidade o aspecto fatalista da desigualdade. Norberto Bobbio
chegou a mencionar, para caracterizar uma esquerda histórica, “homens cujo
empenho político seja movido por um profundo sentimento de insatisfação e de
sofrimento perante as iniquidades das sociedades contemporâneas.”[1]
Podemos ir além disso e afirmar mais uma diferença entre
direita e esquerda, enfatizada por muitos autores e óbvia para qualquer pessoa
com capacidade de leitura de mundo: esquerdistas parecem acreditar no
melhoramento da humanidade enquanto direitistas assumem a maldade e egoísmos
humanos – menos os deles próprios, quando se expressam sobre o tema
naturalmente. A assunção desse egoísmo latente serve de base para aquilo que
Comte-Sponville denominou de “a jogada genial do capitalismo”, isto é, “não
pedir nada aos indivíduos, para que ele [o capitalismo] possa funcionar mais ou
menos, nada além de serem exatamente o que são: ‘Sejam egoístas, ...’”.[2]
Se os homens podem ou não ser melhorados é uma questão que
deveria fazer parte da nossa cotidiana reflexão, independente do espectro
político-ideológico a que estejamos filiados – e todos estamos filiados a
alguma ideologia que no seu cerne se filia a este ou aquele lado da questão
(direita e esquerda).
O fato é que pessoas muito sérias morreram a partir da crença
de que a humanidade poderia ser melhorada. Citemos Sócrates e Jesus Cristo.
Muita gente já disseminou pontos comuns entre os dois eminentes personagens.
Reenfatizemos mais este, então: ambos criam no melhoramento dos indivíduos,
embora o vetor da mudança fosse diferente para um e outro.
Sócrates acreditava que ao sábio correspondia,
necessariamente, a ação boa. O filósofo defendia que era possível, a partir da
busca racional do conhecimento, conhecer o bem e, consequentemente, fazê-lo.
Foi condenado num tribunal por “corromper a juventude”. Uma vez condenado bebeu
cicuta e morreu.
Jesus Cristo por sua vez cria que era possível que o homem se
redimisse de sua condição de mau e pecador. Longe de tal remissão depender de elaborados
processos gnósticos, bastava ao homem crer na deidade de Jesus e arrepender-se
dos seus pecados. A graça infundida no convertido o conduziria pelo caminho do
bem, ainda que apenas reflexo de um proto-bem, a cidade celestial. Morreu crucificado
entre dois ladrões comuns, acusado de blasfêmia.
É possível que encontremos socráticos em toda a extensão da
história da filosofia, assim como cristãos, até hoje. Se foram/são fiéis às
ideias dos respectivos mestres isto constitui uma outra história.
No que se refere ao socratismo podemos dizer que prevalece
ainda hoje uma via alternativa ao que o filósofo propôs no seu tempo, isto é, a
valorização de uma vida vivida sem a preocupação com uma busca pela razão da
existência humana que justifique o seu melhoramento. Já no que diz respeito ao
cristianismo, assistimos no decorrer da história da Igreja e das ideias
religiosas do cristianismo uma quase que completa submissão ao aspecto material
do desenvolvimento humano. A igreja que em algum momento ordenou aos seus ricos
que se dispusessem dos seus bens e os distribuíssem aos pobres hoje assume o
individualismo exacerbado expressamente exaltado em toda a extensão do dogma
soteriológico (a salvação é individual e deve apresentar-se devidamente corroborada
pelos bens materiais adquiridos, por qualquer meio, aqui na terra).
Se os novos socráticos e cristãos estão certos ou não, uma
coisa é certa: não se pode mais imaginar qualquer modelo societário que dependa
de uma suposta bondade inerente ao homem.
Este parece ter sido, segundo André Comte-Sponville, o “erro
de Marx”.[3]
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